Como toda disciplina, o autodomínio na comida e na bebida acaba sendo também uma vitória sobre a cultura do consumo e do materialismo – que, aliás, não é de hoje, se já o salmista a detectava em seu tempo: «Não dura muito tempo o homem rico e poderoso; é semelhante ao gado gordo que se abate. Este é o fim do que espera estultamente, o fim daqueles que se alegram com sua sorte: são um rebanho recolhido ao cemitério, e a própria morte é o pastor que os apascenta; são empurrados e deslizam para o abismo» (Sl 49,13-15).
O verdadeiro jejum, porém, vai muito além... da comida e da bebida. Se «a lei e os profetas se resumem no amor a Deus e ao próximo» (Mt 22,40), para o jejum não é diferente. É o que assevera o próprio Deus, através do profeta Isaías: «O jejum que prefiro é este: acabar com as prisões injustas, libertar os oprimidos, romper com a escravidão, repartir o pão com o faminto, acolher os pobres e peregrinos, vestir os nus e não se fechar à própria gente. Se assim você fizer, a sua luz brilhará como a aurora, suas feridas sararão rapidamente, e quando você invocar o Senhor, ele o atenderá; você pedirá socorro e ele dirá: Eis-me aqui» (Is 58, 6-9).
Para acolher e viver o amor de Deus, o coração precisa estar limpo e livre. É esse o papel que Santo Agostinho atribui ao jejum: «O vazio precisa ficar cheio. Você conseguirá se encher de bens se se esvaziar do mal. Suponha que Deus queira enchê-lo de mel. Se você estiver cheio de vinagre, onde ficará o mel? É preciso jogar fora o conteúdo do jarro e limpá-lo, ainda que com esforço, esfregando-o, para que possa servir a outro fim. Pode ser mel, ouro, vinho, tudo o que dissermos e quisermos, mas, no fundo, há sempre uma realidade indizível, que se chama Deus. Dizendo Deus, o que dissemos? Esta única sílaba é toda a nossa expectativa. Tudo o que conseguimos dizer, fica sempre aquém da realidade. Dilatemo-nos para Ele, e Ele, quando vier, encher-nos-á. Seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é».